Sunday, December 11, 2016

Incompleto



Não adianta nada meu corpo todo pulsar, se meu coração está dilacerado.

Wednesday, June 15, 2016

Burocracia

Do nada, ela vem. Dentro do metro quando penso que tenho que escrever sobre o processo criativo. Parece que sussurra no meu ouvido, mas já aprendi que se racionalizar muito, ela grita. Pior é quando vem no meio de uma notícia sobre economia que escrevo já com o prazo estourando. Parece que faz de propósito.

Sempre foi assim, desde criança.  Às vezes através de voz, noutras de imagens, de algo que a retina capta e a alma acha tão extraordinária que tem a pretensão de eternizar. Tem momentos que uma história fica martelando na cabeça como pingos de chuva batendo numa lata.

Tem vezes eu tenho que correr atrás dela e apelo para boas leituras para me inspirar. Até que do nada, ela vem na forma daquela mosca azul que quase bate em mim, de uma voz, de uma história que alguém conta, de uma manchete de jornal, de uma lembrança e até da obrigação de escrever um texto.

Sempre tenho que olhar todos os papéis jogados dentro da bolsa, as mensagens na caixa de rascunhos e os e-mails que envio para mim mesma, ali estão frases soltas, algumas sem nexos, que insistiram em vir à tona num momento impróprio, ou trechos de histórias ou textos inacabados.


Geralmente é a noite que organizo meus escritos, ela sai melhor com as estrelas. Ela sempre sai de algum esconderijo dentro de mim. Paro de digitar e penso, então ela não vem, ela vai. Se liberta. Tenho que reescrever. Do nada, ela vai. Como agora, me obrigando a mudar de assunto.

Friday, May 27, 2016

Conta

Precisamos trocar o carpete. Estranho como essa kitnet vazia me parece grande agora. Quantas vezes batíamos nos poucos móveis e reclamamos da falta de espaço? Por todos os lados haviam os nossos desejos, nas fotos coladas na parede, nos guias de viagens, na lista de treino colocada na porta da geladeira: primeiro as plantas, depois os animais de estimação e por último, os filhos. Quando as plantas morreram por falta de cuidado já deveríamos ter entendido o nosso futuro. E as roupas guardadas em malas? A falta de espaço já denunciava a essa história não seria permanente. Agora só nos resta dividir a conta da troca do carpete por causa dos queimados de cigarro e das manchas de vinho.

Thursday, April 28, 2016

Nirvana

"Na bruma leve das paixões/Que vem de dentro
Tu vens chegando/Prá brincar no meu quintal"
Anunciação – Alceu Valença

Ele entrou na minha vida no final de setembro, veio com a primavera e a Vênus de libra. Na verdade, ele já estava lá anos antes. Quieto, sério, inteligente, cheio de mistérios com os cachos que escorriam pelas costas e as opiniões bem colocadas com a voz doce.

E eu já havia reparado nele anos antes. O fato é que gosto de pensar que ele veio com a primavera, talvez não estivéssemos maduros antes e só então ele passou a fazer sentido. Foi com metáforas sobre viagens e me prometendo vinho (que ainda não bebemos) que me ganhou.

Com ele, eu conheci um menino com quem posso conversar sobre um amigo nosso, um príncipe que foi embora do seu planeta numa revoada e ama uma rosa... Além disso, posso fazer qualquer pergunta que ele sempre vai procurar uma resposta.  Amo pessoas que sabem tratar tudo com seriedade, das coisas mais leves as mais improváveis.

Com ele, conheci um militante com quem posso conversar sobre a dialética marxista e a conjuntura. Eu o respeito muito e até ouvir os piores prognósticos dos lábios dele parece música.

Com ele, conheci também um homem que me dá um prazer inimaginável. Que cada vez que me beija faz parecer que estou num sonho, que encaixa perfeitamente em mim e faz com que eu durma confortável mesmo passando a noite toda enroscada nele.

Quase todos os dias, ele me surpreende ou eu descubro alguma coisa sobre ele e isso deve ser como o universo testemunhando o nascimento/morte de uma estrela.  Porque sempre que descobrimos um detalhe no outro é a morte de um mistério e o nascimento do brilho de uma convicção.

Gosto da maneira como ele ilumina algumas questões em mim e me faz encarar as coisas de outro ângulo. Não tenho dúvidas que essa história colabora muito para o meu processo evolutivo, há uma vontade absurda de ser sempre melhor para aproveitar a minha primavera.


Eu que já visitei alguns fundos de poços, penso que ele é o meu nirvana. Não a banda, mas o termo sânscrito que significa o estado de libertação atingido pelo ser humano ao percorrer sua busca espiritual. Um estado de paz, de plenitude, de compreensão e aceitação, aquela expansão da consciência que nos faz entender que tudo está no seu devido lugar. A primavera chegou no momento certo para eu aprecia-lá.  

Wednesday, March 30, 2016

A voz de Iara

Mesmo adulta, Iara ficava a vontade sentada numa mesa para crianças e aquilo me intrigava muito. Não sabia se eu crescia e ela encolhia, mas ficávamos do mesmo tamanho. A sala era toda colorida e com muitos brinquedos, cheia de estímulos para as crianças, embora eu não percebesse isso com os meus seis, sete anos de idade. Às vezes, pensava que eu ia lá apenas para brincar, até perceber que mesmo nas brincadeiras estava sendo avaliada.

Morena, com os cabelos pelos ombros, tinha os ares da minha mãe, o que me dava segurança. Lembro da maneira como mexia os lábios, pronunciando devagar as palavras. Ainda posso vê-los como se fossem imagens em câmera lenta de um filme mudo: pa-lan-ta, pa-lan-ta, até a pa-lan-ta virar planta.

Iara foi a minha primeira fonoaudióloga e me acompanhou por anos. Às vezes gostava dela,  noutras, a odiava. Muito mais do que sentimentos ambíguos, foi dentro de um consultório que tive o primeiro contato com a escrita e os seus mistérios.

Se na escola precisava enfrentar as risadas dos coleguinhas e muitas vezes, o despreparo das professoras. Ali me dei conta que era mais fácil lidar com as palavras escrevendo. Gostava daquele alfabeto de borracha com letras coloridas, o R tinha um dos lados descascado, o A era de um vermelho desbotado e o Z parecia mais novo, talvez por falta de uso.

Lembro que eu gostava de observar o mosaico colorido que as letras formavam e da sensação boa quando eu acertava uma palavra, geralmente seguida pelo pânico que me dava quando eu tinha que falar. Porque oralmente, o R não saia, o V e o D não existiam e o J sumia.

Com o tempo, as sessões e o medo das palavras foram diminuindo. O tio Dani deixou de ser Tani, o R passou a sair, a pa-lan-ta virou planta e eu não precisava mais fazer malabarismo para fugir das palavras que eu não conseguia pronunciar.  A Iara ficou na lembrança, uma das mais intensas da minha infância, mas da qual não me recordo nem o sobrenome.

Os anos também trouxeram elogios pelas redações que escrevia no colégio e a certeza de que eu só seria feliz se trabalhasse com algo em que fosse possível contar histórias. Já fiz muita terapia para superar o medo de falar, já perdoei o bullying dos coleguinhas e as minhas inseguranças. Mas não me perdoo por não conseguir lembrar da voz de Iara.


Monday, March 07, 2016

Oficinas literárias

Por muito tempo que achava que fazer uma oficina literária era podar a criatividade, doutrinar vocação ou coisa que o valha. Porém, tem tempo que faço dança e perdi a conta de quantos cursos e workshops fiz nestes anos todos e isso nunca me podou em nada, pelo contrário, percebi o quanto a técnica é importante para ajudar o talento, mesmo a dança não ter sido algo inato, como é a escrita para mim.

Refletir sobre isso, considerando os relatos de amigos que já haviam participado de oficinas, junto com a crise existencial que eu passava. O ano de 2014 foi de mudanças e se por um lado, estava trabalhando muito e consequentemente escrevendo bastante, essa produção não era para o blog ou coisas pessoas, nem no meu diário conseguia escrever. Estava em crise por não conseguir produzir nada além de notícias e a vida cobrou a conta.

Então, durante o ano passado, fiz a oficina de Criação Literária do SindBancários, ministrada pelo escritor Alcy Cheuíche, que resoltou na obra “Nos caminhos da imprensa Rio-Grandense e Brasileira”. O livro, que também tem versão em espanhol, reúne contos de 30 oficinandos, abordando episódios marcantes na história do jornalismo e da mídia no estado e no país.

E aprendi muito. Percebi que ainda sei escrever algo que não seja notícia. Fora as inúmeras dicas que não tiram o estilo de ninguém, mas colaboram para melhorar o texto e o processo criativo. Alias, muito exercitamos a criatividade através de exercícios simples que nos lembravam a todo instante que tudo rende uma boa história. 

Porém mais importante do que aprendi foram as pessoas com as quais convivi neste período, as nossas trocas e experiências com aulas regadas a vinho, risadas e muita literatura, me agregaram muito. Com eles também vieram os evento, saraus, debates literários, sessões de autógrafos passaram a fazer parte da rotina. E claro, que os contatos ampliaram consideravelmente, o que é ótimo para quem quer fazer arte.

Durante o verão fiz uma oficina de Literatura e Psicanálise, ministrada pela psicanalista Ariane Severo (companheira do Alcy), no Contemporâneo (Instituto de Psicanálise e Transdisciplinaridade). Foram oito encontro onde pudemos exercitar uma temática mais livre e subjetiva.

Este mês, começo minha terceira oficina literária. Também de Literatura e Psicanálise com a orientação da Ariane Severo, porém está é de dois anos, onde vamos trabalhar os aspectos psicológicos das personagens, importância dos cenários e fluxos de consciência. Ano que vem, os contos produzidos serão compilados em um livro.


Não tenho dúvida que será uma baita experiência. E ao invés disso me podar, estou cada vez mais inspirada e segura para escrever. Ainda bem que me permiti pagar para ver, porque entendi a importância de adubar a terra para as sementes.

Monday, February 29, 2016

Realize um desejo e se faça feliz

 Uma das coisas mais importantes que aprendi depois de começar a estudar PNL e fazer os cursos de desenvolvimento humano foi isso: que para sermos felizes temos que realizar os nossos desejos. A frase do título virou mantra e não podemos negar que isso é bem óbvio.

O problema é que muitas vezes, colocamos os nossos desejos há léguas de distância e inconscientemente, fazemos tudo para não alcança-los. O que aprendi de fato, foi a valorizar os nossos pequenos desejos e desde então quase todos os dias eu tenho sido feliz.

Há anos, antes de dormir faço uma lista das coisas que tenho que dar conta no dia seguinte, mandar o email que estou enrolando, terminar tal texto, finalizar a diagramação do jornal, arrumar os livros, passar no banco... Nada de mais, de extraordinário.

Só que muitas vezes, essa lista ia para o lixo sem nem ao menos eu ver o que tinha feito e geralmente, pouco ou nada tinha sido realizado. Até me dar conta que aquilo eram desejos, talvez não tão grandiosos quanto andar de balão. Mas desejos e não realizá-los significava repetir a lista no dia seguinte e ir dormir com aquela sensação de não conseguir fazer nada, sem me sentir feliz.

E feliz neste caso, não precisa ser aquela felicidade transbordante, mas a sensação de missão cumprida, de satisfação por ver tarefas (sejam elas do tamanho e da importância que forem), realizadas. Com isso, a vida flui e a energia não fica estagnada. As coisas passam a acontecer com uma sincronicidade absurda.

Nem sempre consigo realizar todas as minhas tarefas diárias, que hoje as chamo de desejos diários, é verdade. Mas fico bastante feliz quando chego no fim do dia e vou riscando a minha lista. Aprendi a olhá-la e geralmente tem mais desejos realizados e sendo realizados do que ao contrário.

Com isso, também acabei fazendo um caderninho da gratidão, foi meio inevitável agradecer no final do dia ao ver a lista de desejos diários sendo riscada. Outra coisa que passou a acontecer foi me dar conta das surpresas no dia a dia. O almoço inesperado, não ter se atrasado, o encontro com pessoas queridas, o elogio que surpreende, a paisagem que salta aos olhos, a maneira como as coisas se encaixam para tudo dar certo...


Ficou claro que quando a gente faz a nossa parte, o universo faz o dele. E esse texto está aqui, justamente hoje, porque o 29 de fevereiro é um dia extra para realizar um desejo e se fazer feliz!

Tuesday, February 16, 2016

Erro médico

Ele senta constrangido em frente ao homem alto e careca. Não sabe se o chama pelo nome ou por doutor. Para quebrar o gelo, o médico pergunta o que lhe traz ali. Fui indicado a procurar terapia, mas acho que houve um engano, eu não preciso de psiquiatra... Me fale de você, indaga o médico. Tenho uma vida bastante normal, sou o mais certo da minha família... Então me fale como é a sua família, induz o terapeuta. Ele encara o médico, suspira longamente e começa.

Ah doutor tem de tudo, gay, lésbica, crente, maconheiro, velhos hippies que parecem que chegaram do Woodstock ontem e até político, mas todos trabalhadores, boas pessoas. Meu cunhado artesão, vive de vender em feiras, estava tão chapado que confundiu Ijuí com Chuí e atravessou o estado para o lado errado. Não achou a feira, mas ao expor os brincos de arame que ele faz, conheceu a sua esposa.

Minha irmã Cristina sempre deu trabalho para a família. Quando casou, achamos que fosse se aquietar, mas já no casamento houve o buxixo que ela havia se encantando com o irmão mais novo do noivo, que morava no sul de Minas. Não deu outra, depois de 10 anos casada com o Gabriel, dois filhos e uma vida aparentemente feliz, ela fugiu com o Micael, o irmão caçula, numa das férias que passou em Minas. Só deixou um bilhete, dizendo que antes de alguém criticá-la, devemos lembrar que ela terá direito à herança duas vezes. Pensa a confusão na cabeça dos meus sobrinhos.

Mas pior ainda, acho que é minha filha. Estudava Engenharia, estava quase se formando quando largou tudo. Foi morar na Guarda do Embaú e cursar astrologia. É uma boa pessoa apesar de não comer carne e ser meio distraída, esquecida... Meu filho afirma que é por causa dos chás que ela toma. Ah, meu filho nasceu prematuro, mirradinho, mas vingou. É um rapagão com quase 100 quilos, tatuado, usa jaqueta de couro com rebites, camiseta do Marx e canta no coral da igreja do bairro.


Não entendo essa gente, isso que não citei nem um terço da árvore genealógica. E entendo menos ainda por que eu, logo eu, preciso de psiquiatra. Deve ser porque  Deus perdoa e Freud explica, não é doutor? 

Monday, February 01, 2016

José e João

José e João cresceram juntos. Tem o mesmo sobrenome, Silva, quando crianças moravam na mesma rua numa cidade do interior. Dividiram brincadeiras, merendas, xingões de professores, descobertas e inquietações da adolescência, conquistas amorosas, porres e festas.

Decidiram juntos ter a mesma profissão e foram cursar jornalismo na capital, onde dividiram um quarto numa pensão, mesas de bar, rodas de violão e mais conquistas amorosas. Juntaram grana para a festa de formatura e planejaram uma carreira brilhante. José é João nunca brigaram, nem por um ser gremista e o outro, colorado. Até que o jornalismo dividiu o caminho dos amigos.

Os dois se tornaram referência na área, seguiram estudando e hoje dão aulas em grandes faculdades do Brasil. José fez carreira nos principais veículos de comunicação da mídia tradicional. Escreveu para os maiores jornalões do país, foi correspondente internacional e fez doutorado em marketing nos Estados Unidos. Aprendeu a ver a notícia como um produto. Dizem que cobra caro para dar palestras em universidades privadas ou para empresários que gostam de ouvir como a mídia é subserviente.

Desde a faculdade, João trabalhou com os meios alternativos. Fez carreira escrevendo para ONGs, sindicatos, movimentos sociais e pastorais de igrejas. Implantou a Rede Brasil de Comunicação Popular que engloba programas em rádios comunitárias, uma revista e um jornal que devido aos poucos recursos financeiros não tem a tiragem que gostaria, mas investe pesado no portal de notícias da internet. João é dono do blog mais lido do país e fez doutorado em Sociologia da Comunicação, na França. Aprendeu a reconhecer o que há oculto em cada notícia. Quando dá palestras para o seu povo, fala sobre uma comunicação livre, poderosa e revolucionária. Dizem que cobra apenas a passagem.

João percorre o país defendendo a democratização da mídia, o fim dos monopólios e a criação de um conselho nacional de comunicação. José, quando indagado sobre o assunto é taxativo: isso é censura! Seguidamente, eles trocam farpas públicas sobre as ideias que defendem. Outro dia, o grande grupo para qual José trabalha, demitiu dezenas de colegas e coube a ele dar explicações para a turma do sindicato, liderados por João, que protestava em frente ao prédio.


Quando eles se encontram em algum evento social não se olham, não se cumprimentam e não se conhecem. Todos pensam que são inimigos, mas nos momentos em que cada um relembra sua trajetória e recordam com saudade os meninos que foram, se perguntam em que momento o amigo, tão inteligente, se perdeu.

Conto publicado no livro "Caminhos da imprensa Rio-Grandense"

Tuesday, January 19, 2016

Vamos brincar?

- Qual a sua brincadeira preferida?

- Caçar palavras com a minha inspiração!

Wednesday, January 13, 2016

A estudante

Segunda-feira e eu, bêbada. Deveria estar em casa, fazendo o trabalho de História da Psicologia. Disse num bar da Cidade Baixa. Tem a impressão de que falou alto demais, mas parece que as amigas nem ouviram.

Você falou alto sim, Luisa. E tem bebido em demasia também, daqui um pouco começa a lamúria sobre o tempo perdido. Aquele conhecido discurso de que depois de cinco anos de cursinho, criou coragem e enfrentou os pais. Desistiu da medicina para a psicologia e finalmente passou.

Do que é o trabalho, Lú? Questiona uma das moças, deixando a voz interna longe e trazendo a jovem de volta para a mesa do bar. A sensação de tontura parece mais intensa. Preciso ir no banheiro, pensa enquanto começa a responder.

Sobre histeria. Já assisti Freud Além da Alma, que mostra como ele ousou em usar a hipnose para tratar essa patologia. Mas preciso de mais leituras, conta desanimada. Nunca entendi teu amor repentino pela psicologia, até porque no primeiro semestre, tu passaste com notas baixas em todas as matérias.

É essa a deixa para começar a contar a historinha triste, daquelas que não são inverdades de fato, mas mudamos daqui, contamos um pouquinho diferente ali e acaba virando uma mentira que a gente tem certeza que é verdade. Vai Luisa, dá a sua versão. Não queria mais que o pai pagasse o cursinho, se libertou e entrou na faculdade para realizar um sonho. Não é isso que espalha por aí?

Luisa passou o trajeto até a cobertura onde mora com os pais, ouvindo essa voz. Incomodada, chegou a chorar no banco de trás do táxi... Se sabotou tantos anos moça, afinal, a adotada nunca poderia ser médica como os irmãos e os pais. Cresceu ouvindo a história bonita que a mãe contava, cheia de orgulho, que ela foi salva num parto complicadíssimo, onde a mãe biológica não resistiu. Muito se perguntou quantas vezes essa versão fora ensaiada. Nunca perguntaram o que ela queria. O pai não iria mais pagar cursinho, estudasse qualquer coisa, mas entrasse numa universidade. Foi o que fez.

Sobe os degraus do prédio cambaleando, os segundos que espera o elevador parecem intermináveis. As portas abrem e ela paralisa. Lá dentro tem o reflexo uma moça de vinte e poucos anos, maquiagem borrada de bebidas, risadas e lágrimas. Bonita como ela, mas sem a malemolência que o álcool adiciona à pessoa e o autocontrole de quem pode ter um ataque histérico a qualquer momento. A mulher do reflexo tem uma beleza séria, seca, julgadora e castradora. Como um superego.