Monday, December 29, 2014

Obviedades do caminho



Quando você começou puxando meu tapete, pensei que não fosse aguentar. As passagens já pagas e os planos já traçados foram o mais fácil de desfazer, difícil mesmo foi perceber que sentimentos podem terminar em falta de respeito, traição e ameaças. Necessário foi compreender que não eu poderia maximizar uma primeira experiência e permitir que isso manchasse as possibilidades do futuro. As pessoas são diferentes. Eu estou diferente.
Viajar parecia arriscado demais, horas sentada em aviões e ônibus não eram o recomendado, mas não tinha o que fazer. Era correr o risco para me salvar, para dar uma chance de olhar as coisas por outro ângulo e principalmente me enxergar. Foi preciso um roteiro cheio de escalas, várias aspirinas, meia de compreensão e paciência com o ritmo do meu organismo. Todos esses cuidados não impediram que eu parasse no único posto de saúde de uma cidadezinha no interior de Goiás.
Mesmo não sendo do tipo que curte paixonites agudas em viagens e com a perna tão inchada a ponto de o tornozelo estar quase do diâmetro da coxa, curti muito aqueles três dias com o único médico de uma cidadezinha do interior, que havia se formado em Cuba, morado em Florianópolis, em Brasília, em Buenos Aires e no Peru, que estava em busca de sossego “porque viajar é muito bom, mas ficar se mudando toda hora cansa e a gente sempre deixa coisas pelo caminho.” Me dei conta que teriam outras pessoas. Constatei que paixonites de viagens são ótimas lembranças, mas são das coisas que a gente deve deixar pelo caminho. Qualquer movimento no sentido contrário é ilusão e invasão a uma realidade que a gente não leva quando estamos na condição de estrangeiro, turista ou viajante.
Foram muitas as vezes que tive certeza que não aguentaria o tranco, tamanha a quantidade de demandas, de gente pedindo, de matérias para escrever, atos para cobrir, boletins para diagramar. Iria da hospiciolândia direto para o hospital psiquiátrico São Pedro se alguns atos não fossem adiados, os prazos estendidos, o case mudado e as coisas se acertado. Não há clichê mais verdadeiro do que “trabalhe com o que ame e não terá que trabalhar um dia.”
Seria complicado, o ideal era não forçar muito a perna, pois uma Trombose Venosa Profunda é muito agressiva. Teria que pegar leve no Pilates e priorizar as caminhadas lentas. Mas em cada avaliação, permitiam que eu aumentasse a carga e quando me dei conta, estava correndo, dançando e ensaiando duas vezes por semana e tive a certeza de que me mexer é vital para minha sanidade. Consegui subir num palco de novo e dançar, sem a perna inchar. E já dá até para passar noites e dias em cima do salto, como se nada tivesse acontecido.
Havia decidido focar em mim, sem me interessar por alguém e criar expectativas. Cogitava até iniciar uma vida casta de freira. Mas prestei atenção no que já mexia comigo e me surpreendi e gostei e é bom sentir o arrepio que me dá só de lembrar. Notei que as pessoas despertam coisas diferentes, e mesmo quando sou invadida por um medo absurdo por me dar conta do que isso significa, sinto que isso me faz bem.
Eu tinha certeza que não aguentaria, que as coisas não teriam mais graça, que me afundaria na descrença, no pessimismo, na ideia terrível de que ninguém presta. Só que todo dia eu acordava leve, sem o peso das culpas pelas coisas que a gente se responsabiliza sem nem se dar conta, para se punir. Já me questionei muito se leveza é sinônimo de felicidade, ainda penso que não, mas com certeza, andam bem próximas.
Obrigada 2014, você não me deu nada do que esperava, mas foi muito melhor do que imaginei.

Sunday, December 28, 2014

Para o meu anjo de quatro patas

"Foi o tempo que dedicaste à tua rosa que fez tua rosa tão importante” - Antoine de Saint-Exupéry


Eu fiquei meses pensando na possibilidade de ter um gato e neste período, sempre ponderava que seriam cerca de 15 anos. Depois de decidida fui em busca do meu gato preto de olho amarelo. O Galileu veio tão pequeno que nem conseguia tomar água sozinho, antes dos saltos precisos, acompanhei os pulinhos desengonçados e o miado era tão fino que mal escutávamos. Vi desbravar meu quarto, a casa, o pátio, o telhado, a vizinhança e a rua. Mas claro, que a primeira conquista foi a minha cama, já que nunca deu bola para a dele.

Gostava de imaginar tudo que poderia acontecer na minha vida em 15 anos: mestrado, doutorado, casamento, viagens, filhos, as mudanças, as permanências, os perrengues e as bênçãos. E quando tivesse com 40 e poucos anos, iria me lembrar que com 28 eu fui até a zona sul de Porto Alegre buscar o meu gatinho, que antes de ser Galileu, chamei de Gaya, que usava uma coleira com guizo, que tinha pelinhos na ponta das orelhas, que era muito peludo, que gostava de tomar água na pia... Perceberia ele em vários momentos da minha vida, ronronando, engordando, apostando corrida comigo, me impedindo de ler o jornal, suspirando (eu não sabia que gatos suspiravam). O Galileu estaria lá, enquanto a minha vida mudaria e envelheceríamos cúmplices.  

Sempre achei tristes esses gatos de apartamentos, os seres que querem gozar de sua liberdade devem ir ver o mundo. Ele queria e eu nunca o privei, saia e voltava quando quisesse (porque sempre reconhecemos o lugar para onde devemos voltar). O único cuidado foi castrá-lo e a minha única preocupação sempre foi atropelamentos (seria intuição?), sabia que de cachorros, gatos brabos e pessoas, ele se safaria. Um dia, vi o Galileu atravessando a rua (uma avenida bastante movimentada), todo lindo, dono de si, livre. Não seria eu que o impediria de viver isso. Sabia do preço que poderia pagar e que agora, pago.

Porém, nunca imaginei que seria tão rápido, não foram nem nove meses com o meu gatinho e isso foi cruel. Fico me perguntando como ele não viu a roda? Onde estava a atenção dele? Em algum inseto, numa folha, num lixo jogado no chão... Como todos os gatos, o Galileu era muito curioso, mas era o MEU gato. Um lorde, um galã, minha mini pantera negra e selvagem e por isso, dói. Por outro lado, acho irônico ele ter vindo e ido em 2014, ainda mais para mim que nunca fui fã de gatos. Refletia muito sobre por que quis ter um felino e gostava de pensar que esse era um momento de transição, mais maduro, leve e com consciência. Agora percebo que até para as mudanças internas, o meu gato preto (e lindo) é uma referência.

Algumas pessoas me criticaram, que ele deveria ter sido criado preso, só dentro de casa. Com algumas discuti sobre o conceito de amor e liberdade. E não me arrependo, ser vivo é para viver e eu que aguente no osso a saudade. Pior seria, estar chorando daqui 15 anos e me culpando por não ter deixado o Galileu livre. Até a cocota aqui de casa vive com a gaiola aberta.

Lembro de uma noite, depois dele estar elétrico e mexer em tudo e bagunçar tudo, ele deitou do meu lado e suspirou e eu entendi aquele suspiro como “essa vida é tão boa.” E isso me consola, porque tenho certeza que a breve vida dele foi muito boa, cheia de amor e aventura. Como ele se divertiu na noite do dia 24, o Galileu adorava gente, casa cheia, bagunça.

Curte o céu dos bichos meu gatinho, que deve ser bem melhor que o dos humanos. Pula bastante de nuvem em nuvem, balançando teu sininho e quando achar a vida muito boa, suspira, que neste momento eu vou estar aqui neste mundo cão, sorrindo porque lembrei de ti. Um dia, quando eu te encontrar, vou te abraçar por mais de 15 anos, só para tirar o atraso e não adianta miar, porque eu não vou soltar.

Sunday, December 21, 2014

Gaveta cheia


Pulseira de miçanga que nunca usei. Convite para formatura. Cartão de Natal do cirurgião plástico que colocou meus peitos há anos. Rolha. Joaninhas. Passagens para Santa Maria. Ingresso para o show do Paul McCartney. Canetas. Marca páginas. Bilhetes. Papel com número de telefone que eu não faço ideia que de quem seja. Cartão de aniversário das colegas de trabalho. Registro do horário no cartão ponto do serviço. Release de uma entrevista coletiva. Ingressos para festivais de dança do ventre. Pen drive. Ingresso para teatro. Passagem para Brusque. Fotos. Cartão de visita. Pílulas anticoncepcionais. Uma caixa vazia de pílula do dia seguinte. Convite para chá de fralda. Lembrança de aniversário de um aninho. Imã de geladeira. Ingresso para o show do Roger Waters. Cartão de crédito que eu não pedi e não desbloqueei. Origami de bêbada em guardanapo de bar. Mapa de Montevidéu. Comprovante de passagem de ônibus de Varadero para Trinidad, em Cuba. Folha de cheque. Imagem de São Jorge. Comprovante de depósito de pagamento para curso de astrologia. Email com confirmação de reserva de pousada no Rio de Janeiro. CDs com músicas árabes. Uma fita cassete com “pijamas místicos” gravados. Ingressos para show do Fito Paez. Lixa de unha. Cartão com horário da terapia. Carteirinha de vacinação do Galileu. Bilhete do ex. Receita com o grau dos meus óculos. Recado da melhor amiga. Dorflex. Endereço da costureira. Desenho para uma tatuagem que nunca fiz. Entrada para o museu do Rodin, em Paris. Cartão de ônibus de Barcelona. Blocos de anotação. Calculadora. Etiqueta de roupa. Vidros de florais. Propaganda de cartomante. Receita de mouse de chocolate escrito atrás da folha de pagamento de setembro de 2011. Bula. Autorização para exame médico. Manuel de instruções de celular. Um livro de Salmos. Cabo USB. Credenciais de imprensa. Lembranças de casamento. Oração de Santo Expedito. Certificado de conclusão de oficina em dança egípcia. Inscrição para curso de comunicação sindical. Mensagem do biscoito da sorte. Desenho feito pelo afilhado, anos atrás. Tabela com os horários e projetos da Casa de Nazaré – Centro de Apoio ao Menor. Chaveiros. Amostra grátis de creme hidratante. Poemas. Surpresa com a quantidade de mim que há em uma gaveta.