Ao som de Menino Deus, do Caetano Veloso
Querido Caio,
Assisti sábado o documentário “Para sempre teu, Caio F”, da
Paula Dipp e do Candé Salles. Emocionante, como você era lindo menino! Teus
amigos deram depoimentos sobre você, a Déa Marques, o Luiz Arthur Nunes, o Luciano
Alabarse, essa gente que eu já me sinto íntima, porque li muitas das cartas que
vocês trocavam. Falaram da tua obra e da tua pessoa. Lembraram fatos, contaram
histórias, elogiaram os textos e se emocionaram. Seus irmãos também falaram,
deve ser difícil para eles.
A Regina Duarte fez uma fala linda, disse que muita coisa
ela só se deu conta depois de ler você, que pinçou coisas na consciência dela
que poderiam passar a vida toda, adormecidas. É isso Caio! Você fez isso comigo
também e com tanta gente por aí. Lembra que nossa relação não foi assim, de uma
hora para outra. Li Sargento Garcia no colégio e foi muito forte para uma
menina de 14 anos. Depois, já na faculdade uma amiga vivia falando bem de você
e eu resistia, até o dia que um professor levou Os Sobreviventes como exemplo de
texto pós-moderno. Me ganhou, foi um amor à segunda leitura.
Sério Caio, você tão virginiano me trouxe detalhes da vida
que eu nunca teria reparado. Me falou de amores falidos e bem sucedidos, me
explicou a fossa e a finitude da vida,
me mostrou o lado feio, sujo e sombrio das pessoas, me descreveu o sexo das
mais diversas maneiras, me acompanhou quando mergulhei de cabeça no fundo do
poço e me deu a mão quando foi necessário voltar para o lado leve do mundo. Tudo através
dos teus textos tão crus, verdadeiros, sem firulas, tudo muito simples, mas
igualmente intenso. Ensinou que a gente sempre pode tirar um coelho da cartola
ou enfeitar até a amargura.
Teve uma vez, eu estava numa estação de trem na Áustria, era
madrugada. Com meus 25 anos, fazia uma viagem de mais de dois meses pela Europa
e sozinha. Aquele dia estava cansada, há dias eu não conversava com ninguém.
Tinha vindo de Munique, descido numa estação de Viena no meio da tarde,
almoçado ali mesmo, dado uma volta pelas ruas próximas, pegado um ônibus para
essa estação que estava onde pegaria o trem lá pelas 2h48 (lembro que era um
horário quebrado e ainda assim, os trens nunca se atrasavam) para Milão.
A estação ficava nos arredores de Viena, no meio do nada, eu
fiquei umas quatro horas lá, sozinha, esperando o trem que veio da Rússia.
Virou até história, os amigos pedem como foi mesmo a história do tal trem
russo... O fato é que comecei a entrar em pânico, eu que sempre lidei bem com a
minha solidão, sentia ela arranhar, porque naquele momento, num país estranho,
de passagem, com um mochilão nas costas, eu era ninguém Caio, eu era só
solidão. Lembrei de uma das suas cartas que você relatou algo parecido quando
estava sozinho no interior da Escócia, disse que tinha vontade de se machucar
para ter uma dor física que desviasse o foco da dor interna. Eu sentia isso.
Ali, eu chorei metros cúbicos enquanto esperava o trem russo, que chegou pontualmente
e me levou. Pior que o peso da mochila, só o peso da solidão. Mas você me
acompanhava.
Teve outra vez, que eu tava triste, não me lembro o motivo, lia
alguma coisa sobre As Frangas, sempre engraçado. Mas eu chorava desesperadamente
e pensava que “as frangas eram a válvula de escape do Caio”, a gente tem que
criar ilusões e histórias com finais felizes para aguentar essa barra
pesadíssima que é a vida.
Me sinto íntima até das tuas frangas. Tenho um amigo que não
gosta de você e às vezes isso é tema de discussões intermináveis. Qualquer
pessoa que goste de mim, leverá você, o Fito Paez e músicas árabes de brinde.
Assim como qualquer pessoa que goste de você, levará as frangas e a Ângela Rô
Rô como anexo. Nós e nossas extensões...
Alguém no documentário disse que você era muito gentil, que
mandava recados e bilhetinhos para os colegas de trabalho, que não poupava
esforços na hora de agradar quem amava, na hora pensei “é o nosso ascendente em
libra” que nos torna mais humanos. Meu fogo leonino e sua terra virginiana são espalhados
pelo ar da justiça libriana.
Bah Caio, falando dos astros, o mundo anda bem virado. Assim
como os seus amigos, me pergunto o que você pensaria se ainda fosse vivo (em
2016 fará 20 anos que você se foi). Ano de Marte esse 2015, já viu né,
disputas, guerras, batalhas, tudo a flor da pele, muito excesso, egos em
ebulição - Júpiter está em Leão. Quando
será que vamos saber canalizar positivamente a energia do Universo?
A Veja, aquela revista que você trabalhou, é hoje o pior
exemplo do jornalismo brasileiro. Jornalistas continuam quando pouco e
trabalhando muito. Mas escrever ainda é libertador. E a internet que você conheceu tão
superficialmente, se tornou fundamental, o que você pensaria sobre essa orgia
virtual? Temos também as redes sociais, no Facebook você é rei Caio, o que me deixa ora
orgulhosa, ora irritada.
Virou até referência entre teus leitores perguntar se “é fã
do Caio antes ou depois do Face?” Há inúmeras páginas sobre você, com milhares
de curtidas, frases são repetidas e compartilhadas a exaustão, aquela foto com
o Cazuza é ícone. Como fã, fico muito orgulhosa com todo esse teu sucesso. Mais
que merecido.
Mas quando vejo uma frase que não é sua atribuída a você, me
irrita. Me incomoda também que fiquem só na superficialidade do “que seja doce”
– uma das frases mais compartilhadas – tem um mundo por trás disso. As pessoas
tem que saber que você foi uma dos maiores escritores existencialistas do
Brasil, traduzido para dezenas de países, ganhou os prêmios mais importantes da
literatura nacional, foi dramaturgo e colunista de jornal.
É ótimo citarem trechos dos contos mais leves e solares como Que seja doce... ou Zero Grau em Libra, mas tem que conhecerem os outros Carta
anônima, Aqueles dois, Para uma avenca partindo – só para citar alguns dos
mais conhecidos. Saberem da importância de Os Sobreviventes por causa da
maneira frenética que a gente lê devido ao uso que você fez da pontuação. É
necessário ler os teus romances Limite Branco e Onde andará Dulce Veiga?
Se apropriarem da tua imensa contribuição para a nossa
cultura pop, a criação da expressão “saia justa” , ou da classificação para os gays:
Jacira, Telma, Irma e Irene. Acredita que meus amigos homossexuais usam ainda
hoje, principalmente a Jacira (Jacííííra) e a Irene? Caio, você ainda é muito
presente.
Guri, alguém contou em um determinado momento do
documentário, acho que foi a Lygia Fagundes Telles, que você tava chapadão com
a Hilda Hilst, na Casa do Sol (apareceu a Figueira, a tua Figueira mágica), e
vocês saíram para conversar com os mortos. Rimos muitos no cinema. E a Lygia
disse algo do tipo: “loucos, mas cúmplices”. Lembrei de uma noite que eu estava
lá na Guarda do Embaú, depois de várias canecas de chá de cogumelo, eu e a Tatá
vimos um disco voador no meio do Rio da Madre, ou algo muito parecido com isso,
eram várias luzes coloridas, lindo e assustador de se vê. Pouco falo com a Tatá
hoje em dia, nem sei se ela continua morando na Palhoça ou se voltou para São
Paulo, mas às vezes rola umas mensagens no Face do tipo “e aí, tudo certo,
lembra do nosso disco voador?” Acho que é só para ter certeza de que somos
cúmplices caso apareça alguma dúvida em relação à loucura.
Sabe Caio, quando começaram a falar sobre a AIDS no
documentário fiquei triste, sabia que era o começo do fim, do filme e da vida.
Uma coisa que sempre me chamou a atenção foi o teu medo de ter essa doença,
seria intuição? Ontem à tarde, estava tomando banho de sol e pensando que eu
deveria enfrentar o meu medo de dirigir, facilitaria a vida quando quisesse
viajar para algum lugar próximo. Mas tenho medo, sei lá, aí pensei no teu lance
com a AIDS, será que o meu pavor de trânsito é intuição de alguma coisa? Que
isso ainda vai me levar pessoas que amo (vou ali bater na madeira) ou até mesmo
eu?
Sobre pessoas que se ama, já fiquei com muita raiva
daquele teu ex, aquele que é colunista de jornal, já pensei em bater na porta
dele e tirar satisfação: “como assim você esnobou o Caio, ele sofreu horrores
por ti”... Imagina a cena que uma leonina, com ascendente em libra e Vênus em
câncer iria fazer? Mexe com quem amo, para ver! Até o dia que li uma entrevista dele falando
isso, que os teus fã o odeiam, que o perseguem... Claro que ele disse que não
foi bem assim, que você era exagerado e uma pessoa difícil de lidar. De
qualquer maneira, ele está tendo o que merece. Bem feito!
É isso Caio, muita coisa para te dizer. Se estivesse vivo,
encheria a tua caixa postal e de emails. Queria te falar do documentário, que
és lindo, que tem uma legião de gente que emana amor quando pensa em você. A
Suzana Pires resumiu bem, disse que “só lê Caio quem viver”, a tua obra, por
mais niilista, pessimista e até depressiva que seja, é sobre a vida. Para se viver
bem tem que transitar por todos os lados. Tem que ter a noção da risada desesperada,
doida para ser exteriorizada, no meio da tragédia e da dor, assim como saber da
tristeza presente quando estamos inebriados de alegria fugaz.
Não entendo como você, tão espiritualizado, comia carne e
como tão intenso, não tinha tatuagens...
Já tenho “que seja doce” tatuado no braço, penso em fazer outra frase,
mas estou em dúvida. Gosto de “exigimos o eterno do perecível, loucos", “a
única magia que existe é estarmos vivos e não entendermos nada disso” e “chegar
ao centro, sem partir-se em mil fragmentos pelo caminho”, qual você prefere?
Outro dia, joguei tarô e saiu tanta carta boa, O Mundo (esse
se repetiu em todas as perguntas), O Sol, A Estrela, A Roda da Fortuna. O jogo
revelou um futuro bem bonito, acho que tenho que fazer a minha parte agora,
embora não saiba exatamente o que fazer... Sou meio tapada para algumas coisas.
Como você já está aí numa dimensão bem melhor que a nossa,
não tem como postar essa carta no correio, embora pudesse mandar para os teus
irmãos... Posto aqui no blog e sei que o Universo vai levar meu amor e vibração
até aí, junto com os meus sinceros desejos que o teu paraíso seja repleto de
rosas e girassóis, doces de figo, incensos e conversas com a Ana C, muita luz
para ela também.
Quando eu morrer Caio, vou levar os livros para você
autografar, quero te encontrar e te abraçar – imagino em qual altura do teu
peito a minha cabeça vai bater (você tinha quase 1,90m, né?), espero que eu
consiga escutar teu coração. Poderemos conversar sobre astrologia, I Ching, tarô,
búzios, runas, lexotan, sincronismo, co-criação
e outras viagens, você me contará das suas rosas, eu vou falar do meu
jasmim. Quando morar no meio do mato e ter um jardim, ele se chamará Caio F.
Eu comecei escrevendo essa carta ontem, domingo, já com a ideia
de postar hoje por causa da lua que ingressa em touro (estável morada de Vênus)
e porque Vênus está nos últimos graus de aquário, seguindo para peixes, um
ótimo céu, mais amoroso! Agora revisando, me dei conta que esqueci de relatar
que quando terminou o documentário teve gente que só saiu da sala depois que encerrou
os créditos, vi duas moças saírem abraçadas e chorando, vi rapazes dando
tapinhas nas costas e sorrindo cúmplices, todos saíram tocados. Eu garanto,
você foi e é muito amado pelo que escreveu. O Universo te deu exatamente o que
você desejava. Axé!!!
Para sempre tua, Re
1 comment:
KKKKKK, muito bom, só tu mesmo pra escrever essas coisas numa carta para o Caio F. Ele deve ter adorado!
Bj, Cris
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