Sunday, May 13, 2007

Vida em fragmentos

Ela aparece no portão de casa, com o rabo abanando, quando eu entro, pula nos meus pés e lambe minha mão. Ela é azul, como eram os olhos do meu bisavô, que falava que eu era a guria mais bonita do mundo, mesmo o mundo dele sendo pequeno.

Ela é amarelada e surge no meio da tarde, afastando as nuvens e aquecendo o dia. Ela é a voz que a gente não ouvia há tempos, e de repente está ali, no outro lado da linha. É o ônibus que eu perdi, a rifa que eu comprei, o pão de queijo guardado no fundo do armário e que encontrei dois depois exatamente como eu gosto, durinho. É minha prima me chamando de batata, é meu pai me chamando de princesa.

É o banho quente, uma panela de brigadeiro para comer de colher, é aquelas moscas azuis que ficam pairando no ar e que por alguns instantes parecem te encarar, é tropeção que dou no meio da rua e me tira da letargia. Às vezes ela aparece em forma de medo, dos arrepios que a gente tem de repente, no frio na barriga e principalmente nas milhares de possibilidades que aparecem todos os dias.

Não precisamos de histórias dignas de filmes, nem de pessoas perfeitas para viver. A vida está nas dúvidas, que vão sempre me acompanhar e que, com o tempo se transformarão em meia dúzia de certezas. A vida é o banal, o lugar comum, o clichê, o filme com o enredo conhecido e que todo mundo adora, é o que a gente mais evita.

É o que me espera no próximo minuto ou daqui vinte e dois anos, que vai cruzar uma esquina comigo ou me atropelar. Ela é o que eu quero criar quando acho a minha muito chata. Ela se permite reinventar. Ela está me aguardando em tudo que eu ainda não fiz: no meu ofício diário, no problema que vou ter que resolver, nas pessoas que vou conhecer, no homem que vai me tocar, num salto de pára-quedas, numa casinha pequena numa praia qualquer, no santo daime, nas tatuagens, no que eu vou viver e vou guardar.

Ela já esteve no primeiro dia de aula, na festa de cinco anos, na vitória para as eleições da UNE, no que queria Ter falado mas me calei, na primeira ida ao estádio, na mão da mãe que te passa toda a segurança do mundo, no cheiro da comida que minha avó fazia, na aula de natação, no medo do escuro, em tudo o que guardei.

Nunca tive grandes problemas, nunca me decepcionei com alguém, nunca tive nenhuma doença grave, nunca perdi alguém, minha alegria não tem a profundidade da dor, porque não a conhece, e por isso mesmo é pura e leve. Como a leveza que tem na vida, e a gente deixa de perceber, curvar os ombros é carregar um peso que a gente inventa é mais fácil do que, simplesmente abrir os olhos para perceber.

E ela está aqui, saindo de mim, tomando a forma de cada palavra que escrevo, e como a vida é mágica, ela está entrando pela sua retina, para pedir socorro, que não a deixem esquecida num canto qualquer de uma história qualquer.

1 comment:

Anonymous said...

É tanta coisa, tanta diversidade, tanstos momentos, momentos únicos e marcantes pelos quais posso "te conhecer" sem nunca ter te visto.