Wednesday, July 15, 2015

Operária*

Clarice fuma um cigarro atrás do outro. Vai até a janela e procura o mar entre as paredes dos prédios. Recém separada neste final da década de 1950, mora com os dois filhos num apartamento no Leme, Rio de Janeiro. Na Europa, havia enfrentado a solidão. Aqui no Brasil, uma das batalhas é contra o calor.

Busca inspiração para mais uma coluna do "Correio feminino - Feira de Utilidades", que tem no jornal carioca Correio da Manhã. Ainda bem quem pode usar o pseudônimo de Helen Palmer, acha vergonhoso escrever dicas sobre como arrumar a casa, o cabelo, o guarda-roupas...

Pega as folhas de dentro do envelope que chegou dias antes de Belo Horizonte. Observa as cópias de algumas páginas do jornal semanal, O Sexo Feminino, fundado em 1873 pela professora Francisca Senhorinha da Motta Diniz, na pequena cidade de Campanha, no sul de Minas Gerais.

Se conseguisse abordar algum tema mais político na coluna, pensa Clarice. Quem sabe falar da existência dessa publicação, que manifestava ideais feministas. Ela lê numa das páginas “queremos a nossa emancipação – a regeneração dos costumes;  queremos a instrução para conhecermos nossos direitos, e deles usarmos em ocasião oportuna;  queremos conhecer os negócios de nosso casal para bem administrá-los quando a isso formos obrigadas; queremos enfim saber o que fazemos, o porquê, o pelo quê das coisas; queremos ser companheiras de nossos maridos, e não escravas;  queremos saber o como se fazem os negócios fora de casa;  só o que não queremos é continuar a viver enganadas”.

Clarice senta e pega a máquina. Gosta de escrever assim, no sofá com a máquina sob as pernas. Suspira, lê outro texto d’O Sexo Feminino, sobre amor maternal. Considera dar dicas de como educar os filhos, mas desiste, pois ela não tem as respostas. Está mais inquieta que o normal, pensa no seu próximo livro e na demora do retorno da editora. A batalha também é contra a falta de dinheiro.

Começa a escrever sobre a importância de manter a casa arrumada, para evitar a invasão de insetos. Não há nada mais nojento do que se deparar com uma barata esmagada no próprio quarto. Ela para, lê as poucas linhas e não acha bom. Arranca a folha da máquina e deixa de lado.

Fuma mais um cigarro e lamenta como é ruim não falar sobre as angústias, suas e de todos.   Clarice não sabe, mas o texto descartado é o embrião do seu futuro livro A Paixão Segundo G.H. que só será publicado em 1964.


Agora o mais importante é entregar a coluna. Observa suas mãos e resolve escrever sobre a importância da cor do esmalte. Acha o tom, é isso que Helen Palmer quer dizer. Enquanto ela, trava sua batalha silenciosa contra a solidão. 

* Conto produzido para a Oficina de criação literária Alcy Cheiuche.