Clarice fuma um cigarro atrás do
outro. Vai até a janela e procura o mar entre as paredes dos prédios. Recém
separada neste final da década de 1950, mora com os dois filhos num apartamento
no Leme, Rio de Janeiro. Na Europa, havia enfrentado a solidão. Aqui no Brasil,
uma das batalhas é contra o calor.
Busca inspiração para mais uma
coluna do "Correio feminino - Feira
de Utilidades", que tem no jornal carioca Correio da Manhã. Ainda bem quem pode usar o pseudônimo de Helen
Palmer, acha vergonhoso escrever dicas sobre como arrumar a casa, o cabelo, o
guarda-roupas...
Pega as folhas de dentro do
envelope que chegou dias antes de Belo Horizonte. Observa as cópias de algumas
páginas do jornal semanal, O Sexo
Feminino, fundado em 1873 pela professora Francisca Senhorinha da Motta
Diniz, na pequena cidade de Campanha, no sul de Minas Gerais.
Se conseguisse abordar algum tema
mais político na coluna, pensa Clarice. Quem sabe falar da existência dessa
publicação, que manifestava ideais feministas. Ela lê numa das páginas “queremos a nossa emancipação – a
regeneração dos costumes; queremos a
instrução para conhecermos nossos direitos, e deles usarmos em ocasião
oportuna; queremos conhecer os negócios
de nosso casal para bem administrá-los quando a isso formos obrigadas; queremos
enfim saber o que fazemos, o porquê, o pelo quê das coisas; queremos ser
companheiras de nossos maridos, e não escravas;
queremos saber o como se fazem os negócios fora de casa; só o que não queremos é continuar a viver
enganadas”.
Clarice senta e pega a máquina.
Gosta de escrever assim, no sofá com a máquina sob as pernas. Suspira, lê outro
texto d’O Sexo Feminino, sobre amor
maternal. Considera dar dicas de como educar os filhos, mas desiste, pois ela
não tem as respostas. Está mais inquieta que o normal, pensa no seu próximo
livro e na demora do retorno da editora. A batalha também é contra a falta de
dinheiro.
Começa a escrever sobre a
importância de manter a casa arrumada, para evitar a invasão de insetos. Não há
nada mais nojento do que se deparar com uma barata esmagada no próprio quarto.
Ela para, lê as poucas linhas e não acha bom. Arranca a folha da máquina e
deixa de lado.
Fuma mais um cigarro e lamenta
como é ruim não falar sobre as angústias, suas e de todos. Clarice não sabe, mas o texto descartado é o
embrião do seu futuro livro A Paixão
Segundo G.H. que só será publicado em 1964.
Agora o mais importante é
entregar a coluna. Observa suas mãos e resolve escrever sobre a importância da
cor do esmalte. Acha o tom, é isso que Helen Palmer quer dizer. Enquanto ela,
trava sua batalha silenciosa contra a solidão.
* Conto produzido para a Oficina de criação literária Alcy Cheiuche.